sábado, 4 de setembro de 2010
A fantasia autobiográfica de John Fante
Precursor de Charles Bukowski na literatura underground norte-americana, a obra de John Fante é redescoberta no Brasil.
Rafael Rodrigues
Nascido em 1909, John Fante teve como contemporâneos alguns dos maiores escritores dos Estados Unidos, como Ernest Hemingway, F. Scott Fitzgerald, William Faulkner e Henry Miller. O primeiro romance de Fante a ser publicado foi Espere a primavera, Bandini, lançado em 1938. Enquanto John Fante tentava se tornar um escritor bem-sucedido, todos os autores citados já desfrutavam de um prestígio enorme, não apenas nos Estados Unidos, mas também em outros países. Seria como se hoje um novo autor brasileiro disputasse espaço na mídia e nas editoras com Machado de Assis, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos e Nelson Rodrigues, se eles estivessem vivos.
Antes da publicação de Espere a primavera, Bandini, várias editoras recusaram os originais de O caminho de Los Angeles, primeiro romance escrito por Fante, que só veio a público após a morte do autor. O terceiro livro do escritor, e o segundo a ser publicado, foi Pergunte ao pó, que teve boa recepção da crítica, mas não o suficiente para garantir que John pudesse viver apenas de suas obras. Depois deles vieram os livros de contos Dago Red e The Little Brown Brothers. O primeiro foi publicado no Brasil pela Editora Brasiliense na década de 1980 sob o título de O vinho da juventude e reeditado este ano pela José Olympio, com alguns contos a mais. Em 1940, a revista time classificou Dago Red como “talvez o melhor livro de contos do ano”. No entanto, o livro seguinte não obteve a mesma recepção e Fante acabou por seguir a carreira de roteirista de cinema.
É quase impossível falar sobre John Fante sem citar Charles Bukowski. O “velho safado” foi o maior responsável pelo retorno dos livros de Fante às livrarias norte-americanas — e, consequentemente, às de diversos outros países — na década de 1980. Bukowski enviou uma cópia de Pergunte ao pó, livro mais conhecido de Fante, para seu editor da Black Sparrow, avisando que só continuaria publicando suas obras pela editora caso a empresa relançasse o romance. Dito e feito: a Black Sparrow não relançou apenas Pergunte ao pó, mas também todas as obras de Fante que estavam fora de catálogo, além de publicar escritos inéditos encontrados somente após a morte do autor.
Um rapaz e seu destino
A principal característica literária de John Fante é o estilo rápido, objetivo e nada rebuscado. Mas há também uma característica presente em todas as obras do autor: o tom confessional, entregue pelas experiências pessoais presentes em todas as narrativas.
Em O caminho de Los Angeles, Arturo Bandini, principal alterego de Fante, nos é apresentado no início da vida adulta. Ele mora com a mãe e a irmã e precisa ajudar nas despesas da casa, já que seu pai morreu. Narrado em primeira pessoa, o livro se inicia com um relato de Bandini sobre seus últimos empregos, dos quais se demitiu ou foi rapidamente demitido devido à sua insatisfação com serviços que, na opinião do rapaz, estavam aquém de sua capacidade intelectual. Arturo está sempre às voltas com livros de filosofia, ainda que não entenda muito bem o que eles dizem, e se considera um gênio, superior a todos, ponto no qual é claramente influenciado por Nietzsche, autor citado várias vezes ao longo do romance.
"HÁ UMA CARACTERÍSTICA PRESENTE EM TODAS AS OBRAS DE FANTE:
O TOM CONFESSIONAL, ENTREGUE PELAS EXPERIÊNCIAS
PESSOAIS PRESENTES EM TODAS AS NARRATIVAS"
O comportamento exagerado de Bandini é o que torna o livro engraçado e, ao mesmo tempo, melancólico. Um dos maiores trunfos de John Fante, aliás, é este: aliar comédia e tragédia de maneira peculiar, algo incomum em literatura de ficção que se pretende séria. O risco de se cair no pastiche é alto, e poucos são os autores que conseguem encontrar um ponto de equilíbrio. Fante consegue. No romance, Arturo e sua irmã vivem às turras. Às vezes por motivos banais, mas quase sempre pela vontade que Mona tem de ser freira. Durante as brigas, Bandini se diz ateu e critica ferozmente a fé católica da irmã, embora ele mesmo seja um homem de muita fé. Arturo é, na verdade, um atormentado, pois tem ciência de seus pecados, mas não consegue controlar os próprios ímpetos.A fé é um dos temas centrais da obra de John Fante. Em Espere a primavera, Bandini, isso fica ainda mais claro. Nesse livro, encontramos um jovem Arturo com quatorze anos de idade e aqui ele tem mais dois irmãos, além da irmã. Aqui fica claro que Fante não teve a intenção de seguir um roteiro rigoroso ao narrar a saga de Arturo Bandini e que ele adaptou os personagens àquilo que queria contar em seus livros. Para que o protagonista sofra mais, para que ele tenha nos ombros a responsabilidade de ajudar no sustento de sua casa, de sua mãe e de sua irmã, Fante “mata” o pai de Bandini. Para que o livro possa ter alguma ternura, mesmo com todo o sofrimento por que passa a família, Fante dá irmãos mais novos ao protagonista.
Em Espere a primavera, Bandini, Svevo Bandini, pai de Arturo, é um pedreiro que é impedido de conseguir trabalho pela neve do inverno. E, por isso, a família passa dificuldades. A dívida no armazém cresce a cada dia, as roupas dos garotos estão gastas e não há dinheiro para comprar novas. Svevo, que normalmente já é um homem rude, fica cada vez mais nervoso e distante de sua família. Além disso, Arturo tem seus próprios problemas: indisciplinado que é, quase sempre está metido em alguma confusão; tem vergonha de ser descendente de italianos, por conta do preconceito que há contra imigrantes; por fim, tem seus conflitos religiosos, sempre pensando se suas ações constituem pecados mortais ou pecados veniais. A situação fica ainda mais complicada quando ele e um de seus irmãos veem Svevo, que a essa altura não aparecia em casa há dias, abraçado com uma mulher. De todos os romances de Fante publicados no Brasil, Espere a primavera, Bandini é mais completo em termos literários, porque lida com uma gama maior de temas e sentimentos. Não que os outros livros não o façam, mas a atmosfera de Espere a primavera... é diferente, é tudo muito mais doído, mais verdadeiro. É também um livro um pouco mais sério, se comparado às outras obras protagonizadas por Arturo Bandini.
Sonhos de Buker Hill
Neste livro, Bandini está em Los Angeles, mora sozinho e tem sérios problemas financeiros. Eis o primeiro parágrafo da obra: “Uma noite, eu estava sentado na cama do meu quarto de hotel, em Bunker Hill, bem no meio de Los Angeles. Era uma noite importante na minha vida porque eu precisava tomar uma decisão quanto ao hotel. Ou eu pagava ou eu saía: era o que dizia o bilhete, o bilhete que a senhoria havia colocado debaixo da minha porta. Um grande problema, que merecia atenção aguda. Eu o resolvi apagando a luz e indo para a cama”. Arturo não come bem, não consegue escrever e não pensa em conseguir um emprego. Para ele, só existe uma possibilidade: viver de literatura. O mentor de Bandini é J.C. Hackmuth, o editor que publicou seu primeiro — e até então único — conto. Sem ideias para ficção, Arturo escreve uma longa carta para Hackmuth, contando todos os seus problemas, medos e anseios. Pouco tempo depois recebe uma curta resposta, avisando que sua carta seria publicada como um conto; junto com o bilhete, um cheque, que pagaria a dívida no hotel, além de comida, roupas novas e outros gastos.
Paralela à história do aspirante a escritor está a relação tempestuosa que Bandini tem com Camilla, uma garçonete mexicana com quem ele tem um caso. Como dito antes, Arturo tem uma espécie de trauma por ser descendente de italianos e não admite sua paixão por uma mexicana. Isso faz com que os dois tenham brigas constantes, no café onde Camilla trabalha. Apesar das discussões e ofensas, eles se aproximam, mas não deixam de ferir um ao outro com palavras. A relação entre Bandini e Camilla é certamente uma das mais controversas, tristes e marcantes da literatura moderna. Ele a ama e ela deseja amá-lo, mas as provocações e farpas trocadas não permitem que o amor prevaleça. Sonhos de Bunker Hill, segundo Roberto Muggiati, tradutor dos livros de Fante publicados pela José Olympio, “é, na verdade, um remake de ‘Pergunte ao pó’”. Há diferenças, é claro, como o fato de Bandini começar o livro trabalhando como garçom e pouco tempo depois se tornar roteirista de filmes, mas a essência de Pergunte ao pó está lá, o Bandini arrogante, impetuoso e esbanjador. Apesar de parecer mais do mesmo, Sonhos de Bunker Hill é um bom livro.
Em 1933 foi um ano ruim, Fante dá a Dominic Molise, o protagonista, um outro talento: o de ser um excelente arremessador de beisebol, cuja ambição é se tornar jogador profissional de um grande time. A família do protagonista é basicamente a mesma do Bandini de Espere a primavera..., e também sofre por culpa do inverno. Dominic tem 17 anos, está terminando o colegial e seu pai quer que o filho comece a trabalhar como pedreiro assim que terminar os estudos. Isso gerará conflitos e Dom tentará de todas as formas evitar esse destino.
Mas talvez o melhor de todos os livros de John Fante, entre os citados até aqui, seja O vinho da juventude, que ganhou uma nova edição no Brasil este ano. Várias de suas histórias remetem a cenas já vistas de outras formas nos romances do autor, com o diferencial de que os contos têm uma qualidade bem superior. Algumas delas são obras-primas, como “Um sequestro na família”, “Lar, doce lar” e “Um de nós”.
Apesar de poderem ser lidas como histórias independentes, os contos da primeira parte do livro se entrelaçam e formam um quase-romance, ou um esboço de memórias. O alter ego da vez leva o nome de Jimmy Toscana, e sua família se parece bastante, mais uma vez, com a família de Arturo Bandini em Espere a primavera...
Charles Bukowski, no prefácio que escreveu para Pergunte ao pó, em 1979, e que passou a acompanhar as edições do livro a partir de então, diz que Fante era “um homem que não tinha medo da emoção”. Seus livros são tão carregados de paixão que é inútil tentar não se emocionar com eles. Se existe um autor cuja obra pode levar o leitor às gargalhadas e às lágrimas num passar de página, ele se chama John Fante.
Rafael Rodrigues é editor-assistente e colunista do site Digestivo Cultural, além de colaborador de outros veículos. Mantém o blog Entretantos (http://bravonline.abril.com.br/blogs/entretantos).
Fonte: http://literatura.uol.com.br
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Rafael, sou uma grande fã de John Fante. O conheço há mais de 20 anos, para mim o ato de escrever que pode ser tão atormentado está perfeitamente descrito no primeiro capítulo de Pergunte ao Pó. Que bom que ele esta sendo redescoberto.
ResponderExcluirabs
Jussara
Você trocou os nomes dos livros ai no texto. A história dele com a mexicana está em Ask the Dusk e não em sonhos... valeu!
ResponderExcluir