Há vários anos
dorme numa destas estantes um exemplar, não autografado, de um livreto tamanho opúsculo
que reúne nas suas trinta e uma páginas o texto ‘Aspectos Norte-Riograndenses,
dados e informações’, além de tabelas e quadros em folhas não numeradas. É a
conferência que Domingos Barros leu na noite de 9 de dezembro de 1908, no salão
do Museu Comercial, no Rio, representando o Rio Grande do Norte na Exposição
Nacional das riquezas econômicas do Brasil.
Durante
muito tempo, calado e sem pressa, segui os seus passos. Vi a publicação na
revista do Instituto Histórico - tem aqui a coleção completa - quatro capítulos
em A República, de 28 a 31 de dezembro de 1909, o mesmo ano da publicação
autônoma e por uma indicação do historiador Olavo de Medeiros Filho. Anotei sua
publicação original no Jornal do Comércio, do Rio, além de informações também preciosas
que devo a Willian Pinheiro, pesquisador seridoense de olhar certeiro e
aguçado.
A
grande luz que alumiou a figura singular de Domingos Barros foi Manoel Dantas,
mas ficou na primeira década do século passado. Tanto que, em setembro de 2006,
o jornalista Woden Madruga confessou ter lido pela primeira vez o nome de
Domingos Barros numa citação do livro do francês Paul Walle. Há no Instituto
Histórico um exemplar autografado da edição francesa, original de 1910 - hoje traduzido
por Oswaldo Biato e lançado pelo Senado Federal depois de publicado há quase um
século.
É forte sua presença
na forma de citações em Tavares de Lyra, principalmente no ensaio ‘O Rio Grande
do Norte’, de 1912, que também vive aqui, ao lado de sua História, esta de 1921.
E no ‘Memória do Livro Potiguar’, de Manoel Rodrigues de Melo. Paul Walle
elogia a cultura de Barros no capítulo que dedica ao Estado em seu livro de
viagem ‘No Brasil, do Rio São Francisco ao Amazonas’, a quem classifica como um
homem verdadeiramente sábio e erudito com raro conhecimento do Brasil.
Foi
de Domingos Barros a primeira percepção motivadora para vender a riqueza
econômica do Estado no cenário nacional. A sala da exposição do Rio Grande do
Norte, no Palácio do Comércio, no Rio, atraiu a atenção do presidente Afonso
Pena e de dois dos seus ministros. Registra a edição de 8 de outubro de 1908 de
O Paiz: ‘Foram demoradamente examinadas por Sua Excelência - o presidente
Afonso Pena - com especial atenção, a exposição da Companhia Sal e Navegação e os
diapositivos estereoscópicos do Dr. Domingos de Barros, tendo sido as mais
entusiastas e lisonjeiras as referências de Sua Excelência a uma e outra’.
Depois
da repercussão da conferência impressa na Tipografia Jornal do Comercio, Rio, 1908,
e que teve também na platéia a presença ilustre de ministros, o
norte-rio-grandense Tavares de Lyra, ministro do Interior e Justiça, e Miguel
Calmon, de Viação e Obras; e do então deputado federal Eloy de Souza, sua segunda
consagração aconteceu em Natal. Manuel Dantas anuncia a transcrição em A
República depois do sucesso nas páginas do Jornal do Commercio, do Rio. É saudado
efusivamente pelo próprio Manoel Dantas, com o pseudônimo de Braz Contente, por
ter sido merecedor ‘do elogio unânime da imprensa fluminense’.
Domingos,
a rigor, não era totalmente um estrangeiro na Natal do início do século vinte. Ao
contrário. Casado com Leonor, filha de Fabrício Gomes de Albuquerque Maranhão,
era sobrinha de Pedro Velho, Augusto Severo e Alberto Maranhão.
Ele
estava no então Teatro Carlos Gomes, como noticia A República de 31 de janeiro
de 1909, na reunião com o governador Alberto Maranhão, quando um grupo de
amigos aprovou a campanha de aquisição de uma casa para a viúva e os filhos do
poeta Segundo Wanderley; a edição de suas obras poéticas e o planejamento daquele
que seria o evento cultural mais importante na década de abertura do Século XX:
as conferências de Manuel Dantas, Eloy de Souza, Domingos Barros, Honório
Carrilho e Henrique Castriciano promovidas pelo pequeno e sempre bem humorado jornal
literário O Bloco. Eloy abriu com os Costumes Locais e Manuel Dantas com sua
célebre visão de uma Natal futurista.
A
conferência de 1908, de Domingos Barros, é a demonstração do seu espírito
empreendedor, razão da inveja provinciana da qual acabaria vítima. É a primeira
visão grande-angular da economia do Rio Grande do Norte e os benefícios, se
exploradas corretamente, para as futuras conquistas sociais. E revela, em seu
levantamento surpreendente, nossos rebanhos bovinos e caprinos, a produção de
açúcar, cera de carnaúba, algodão, sal marinho, borracha de maniçoba e mangaba,
e as pequenas lavouras. Em cada região e com suas especificidades, agrupando
produtos e produtores nos espaços e ao longo dos textos e quadros elaborados
pelo seu talento observador.
Sua
sensibilidade não se volta apenas para a economia. Impressiona vivamente sua
descrição da vaqueirice no sertão: ‘No entanto o mister do sertanejo é árduo e
penoso e reclama uma alma forte e varonil, aliada à grande destreza e robustez
física’. E logo a seguir: ‘Vaqueiro no sertão só o é o sertanejo, porque a lide
do gado é muito diversa da dos campos do sul’. E descreve o sertão: ‘Há poucos
descampados. O aspecto geral é a caatinga, espécie de floresta baixa,
intrincada e espessa, onde predominam as plantas espinhosas, a jurema, a favela,
o xique-xique e o mandacaru’. E narra
essa luta dos homens e dos bichos numa orquestração de gestos e ritmos na
aspereza da caatinga.
A
orfandade pobre impediu Domingos Barros de concluir, já no quarto ano, seu
curso de medicina, mas conseguiu aprofundar seus conhecimentos de química. Ao
lado de Vale de Miranda, o inventor da Sanarina, produziu o sal de qualidade
aqui no Estado para o mercado da carne de charque no Rio Grande do Sul, e
instalou o sistema de iluminação do Teatro Carlos Gomes a gás acetileno. Um
desafio que uniu seu talento ao de Vale de Miranda e os credenciou para a construção
do sistema de iluminação da cidade. Sonhou com ferrovias, indústrias,
invenções.
Foi um
entusiasta da Aeronáutica Brasileira e com esse título reuniu os três ensaios
biográficos sobre Bartolomeu de Gusmão, Santos Dumont e Augusto Severo, como narra
Augusto Fernandes no capítulo onze do seu livro ‘O Pioneiro Esquecido’.
Domingos nasceu em Garanhuns, Pernambuco, a 4 de março de 1865 e fechou seus
olhos para sempre a 14 de fevereiro de 1938, no Rio, dois anos antes do
Ministério da Aeronáutica lançar seu livro na coleção oficial, em 1940, pela
editora Americana.
A publicação desta
edição fac-similar de ‘Aspectos Norte-Riograndenses’ pelo Sebo Vermelho, do
editor Abimael Silva, é um grande sol que nasce depois da longa noite de 104
anos que apagou a presença de Domingos Barros. Esquecido das nossas instituições
culturais ao longo de mais de um século sem nunca merecer uma réstia de luz sobre
o seu rosto, deixa agora de ser o herói desaparecido e anônimo a vagar no
silêncio da noite sem fim para brilhar de novo com a velha chama do seu talento
luminoso que anteviu o futuro de um Rio Grande do Norte que ninguém percebia.
2012, nos cajus
perfumados do verão.
Vicente Serejo
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