O que aconteceria se o curador de uma galeria cismasse com o sorriso da Mona Lisa de Leonardo da Vinci e encobrisse a sua boca com o desenho de um tecido fino, revelando para o público a imagem de uma odalisca? A cena, apesar de hipotética, serve para ilustrar o que foi feito com o “Dicionário do Folclore Brasileiro”, de Luís da Câmara Cascudo, editado pela Global Editora de São Paulo. Segundo o escritor Moacy Cirne, trata-se de uma violência cultural cometida contra o autor. “Nossa principal referência intelectual e cultural não poderia ter sido tratada assim. Ele foi visto como autor de segunda linha, e mesmo se fosse, este tipo de mutilação é inadmissível”, disse Moacy. Algumas das alterações gráficas realizadas, textos excluídos ou acrescentados são comentados no livro “Dicionário do Folclore Brasileiro: uma edição desfigurada”, de Moacy Cirne. O livro será lançado amanhã, às 19h, na livraria Siciliano do Midway.
Kamilo MarinhoMoacy Cirne contesta edição da global editora sobre obra de cascudo
Segundo Moacy, no Dicionário do Folclore Brasileiro, de Luís da Câmara Cascudo, cuja primeira edição data de 1954, revisada e ampliada pelo próprio autor até a quarta edição, de 1980 constam pouco mais de 2000 verbetes relacionados ao folclore e suas definições. Algumas delas elaboradas em parceria com amigos de Câmara Cascudo e estudiosos. Moacy relata que na construção do texto, Câmara Cascudo ora posicionava-se em primeira pessoa, ora elaborava construções mais literárias, imprimindo desta maneira traços de sua personalidade. Mas os maneirismos do autor foram retirados do dicionário na edição realizada pela Global e em seu lugar foram postos depoimentos indiretos, onde o autor torna-se oculto.Um exemplo citado por Moacy foi com relação ao verbete “Galinha”. No original Câmara Cascudo começava dizendo “Homero não a cita”, frase retirada pela Global. “Eles aboliram a vertente literária do dicionário”, disse Moacy.
E não foi só isso. No verbete “Carnaval”, inicialmente construído com 115 linhas, frases importantes foram retiradas, como a cascudiana “Do ponto de vista folclórico e etnográfico, o carnaval é um índice anual de sobrevivências e elementos reais da psicologia coletiva...”. No lugar dela surgiram informações de uma realidade que sequer foi vivenciada por Cascudo, como as Micaretas, incluindo a realizada em Natal. Além disso, na edição da Global, 47 linhas foram dedicadas ao carnaval paulista, quando no original, nem chegou a ser mencionado. “A rigor, as 115 linhas cascudianas valem muito mais do que as 190 Global”, escreveu Moacy em seu livro.
Além da inserção de textos inéditos, ainda houve a exclusão de trechos, que Moacy considera ter sido realizada a partir do juízo de valor da revisora. A exclusão do termo “Maconha” é um bom exemplo. No original constava o verbete acompanhado de sua definição, mas não havia nenhum tipo de informação mais apaixonada, que justificasse a retirada do termo. “Cascudo não fazia apologia à maconha. Suponho que a supressão do termo tenha sido uma questão de preconceito”.
Diante das alterações feitas, a que Moacy considera ser a mais grave de todas é justamente aquela que mais se repete: a ignorância das regras acadêmicas de citação. As citações que no original estavam entre aspas, na edição da Global foram inseridas no texto sem qualquer critério. “Cascudo virou um plagiador nas mãos deles”.
O balanço das alterações chegou ao seguinte resultado: cerca de 70% do texto original, talvez mais, foram modificados, em maior ou menor escala. As 811 páginas da última edição autorizada por Cascudo (sem ilustrações) transformaram-se em 768 páginas da edição Global, com elevado número de imagens. Em Cascudo estão presentes 2.154 verbetes, enquanto que na Global estão apenas 1.918.
Para o Presidente da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras, Diógenes da Cunha Lima, Câmara Cascudo é um guia cultural para o estado e julga serem deploráveis as alterações realizadas no Dicionário Folclórico, muito embora elogie a atuação da Editora.
Muito menos Cascudo
Segundo Moacy Cirne, o tema tratado em seu livro, havia sido levantado por outros escritores e intelectuais; alguns poucos artigos haviam sido publicados, incluindo o do antropólogo Miguel Sautchuk, intitulado “O dicionário Multilado”, que pode ser encontrado facilmente na internet.
Moacy conta que para realizar o trabalho, fez uma análise comparativa da última edição da Global, de 2008 (que atualmente está em circulação nas livrarias do país), com a da Editora Melhoramentos (última autorizada por Cascudo).
O trabalho levou dois meses para ser concluído, numa rotina que Moacy definiu como bastante pesada. O autor comentou os verbetes e as alterações mais expressivas na obra de Cascudo.
Impressões Globais
A Global Editora vem reeditando várias obras de Câmara Cascudo, e em muitas delas, como constata o próprio Moacy Cirne, não há qualquer tipo de alteração. O Dicionário do Folclore Brasileiro se tornou um caso à parte, pois a editora achou que seria possível revisar e atualizar uma obra já acabada. A última atualização autorizada por Câmara Cascudo foi feita em 1980, que saiu pela Melhoramentos. A Editora Global começou a editar o Dicionário em 2001 e de lá para cá foram feitas outras quatro edições e no mínimo, uma reimpressão. As alterações foram propostas pela falecida Laura Della Monica (pesquisadora e coordenadora do projeto) e Eunice Pavani (preparação do texto).
De acordo com Camila Cascudo, bisneta de Câmara Cascudo, a família já se pronunciou com relação ao caso. Ela explica que Daliana Cascudo (neta do folclorista) notificou a editora, solicitando que a futura edição retomasse o texto original de Câmara Cascudo, não admitindo qualquer tipo de alteração. “Lemos verbete por verbete, fizemos a comparação e passamos o fichamento da obra, juntamente com os originais”, disse a advogada Camila Cascudo.
Fonte: Jornal Tribuna do Norte
Dicionário do Folclore Brasileiro: uma edição desfigurada - Editora Sebo Vermelho
Lançamento. Dia 21 de Julho na Siciliano do Midway Mall . a partir das 19h
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