segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

O POETA QUE NÃO TREINOU O FLAMENGO


O texto foi publicado originalmente no Jornal Zona Sul, impresso que circula em Ponta Negra e arredores, e no site em 11 de fevereiro último. É quase uma autobiografia. Confira:
Entrevista: Nei Leandro de Castro

Segundo o próprio Nei Leandro de Castro, ele era tão bom no futebol que, no mínimo, hoje poderia ser técnico do Flamengo - caso não tivesse abandonado os gramados. Felizmente para mim, que sou vascaíno, para o atual treinador do Fla, Andrade, e para a literatura brasileira ele abandonou o infanto-juvenil do América e deixou sua vida trilhar o rumo que o transformou no principal nome das letras do Rio Grande do Norte. A entrevista ocorreu em um domingo de janeiro, na sala do apartamento de Nei. Eu, meu filho Gabriel Siqueira (que fez as fotos para a matéria) e o jornalista Costa Júnior conversamos durante quase duas horas com o escritor, poeta e publicitário. É um prazer para o Zona Sul oferecer ao seu leitor um pouco da história de vida do criador de Ojuara. (robertohomem@gmail.com)
ZONA SUL – Você nasceu em Caicó, mas trocou a cidade por Natal aos cinco anos. Recorda alguma coisa dessa época?
NEI – Meu pai foi delegado de polícia em Caicó durante dez, quinze anos. Dos meus irmãos, apenas dois nascemos lá: eu e Berilo de Castro, que é médico. Não lembro muita coisa, pois saí de lá aos cinco anos. Minhas lembranças da infância começam realmente em Natal. Recordo, por exemplo, da Rua Professor Zuza, a primeira onde morei.
ZONA SUL – Apesar de ter deixado a cidade tão cedo você guardou alguma ligação com Caicó? Retorna muito por lá?
NEI – Em Caicó tenho amigos, entre eles Oberdan Damásio, com quem tenho muito relacionamento. Conversamos muito por email e sempre que vou a Caicó faço questão de ir pra casa dele.
ZONA SUL – Mas Caicó, a cidade em si, lhe diz alguma coisa?
NEI – É uma cidade onde tenho amigos, mas que não tem aquela força de memória que tem Natal.
ZONA SUL – Então a sua cidade é Natal...
NEI – Sim, é Natal.
ZONA SUL – Quais as lembranças mais antigas que você guarda de Natal? Do que você costumava brincar?
NEI – Quando eu tinha dez anos de idade, a Rua Apodi era um areal que ia bater no Morro do Estrondo. Era naquela rua e nas suas transversais onde jogávamos futebol. Joguei muito tempo, cheguei a ir para o infanto-juvenil do América. De repente, larguei tudo. Bobagem minha: hoje eu seria pelo menos um técnico do Flamengo. Quem sabe? Meu irmão, Berilo, jogou futebol e é reconhecido ainda hoje como grande craque. Atuou no Alecrim e no América.
ZONA SUL – Além de jogar futebol, o que mais o Nei Leandro menino fazia?
NEI – Também tinha a natação no Rio Potengi. Eu era daqueles meninos que nadava, atravessava o rio, participava dos campeonatos de cangapé, pulava da Pedra da Chapuleta e pescava morés e outros peixes bobos que têm lá naquela margem do rio... São lembranças maravilhosas. Também lembro as praias que naquele tempo eram afastadas, como a Praia do Forte. Íamos a pé mergulhar no Poço do Dentão. Havia uma lenda de que o francês Riffault teria escondido tesouros em uma daquelas pedras do Poço do Dentão. Mergulhávamos para procurar aqueles tesouros que nunca surgiram, nem nunca surgirão.
ZONA SUL – Nessa época você já dividia os jogos de bola e os esportes aquáticos com a leitura?
NEI – Comecei a ler aos 11 anos de idade, influenciado por meu pai, que era um leitor assíduo. Antes eu lia os livros católicos do padre Eymard L´Eraistre Monteiro, que eram uma tortura. Quem se classificava em primeiro lugar na disciplina do padre ganhava livros profundamente desagradáveis. Era obrigado a ler e a comentar em classe aqueles livros que prometiam o reino dos céus e que diziam que o bom comportamento levava direto ao paraíso. Eu ficava profundamente entediado com aquilo.
ZONA SUL – O prêmio era um castigo.
NEI – Sim, o prêmio era um castigo. Uma vez meu pai me viu muito chateado, com um livro nas mãos, e perguntou o que eu estava lendo. Respondi que era um livro dado pelo Padre Eymard. Ele então sugeriu que eu lesse “Capitães de areia”, de Jorge Amado. Foi uma descoberta. Descobri a literatura graças a meu pai e a Jorge Amado. Quando terminei “Capitães de areia” entendi que livro era aquilo, e não aqueles conselhos sobre como ir para o paraíso. O resultado é que li quase tudo de Jorge Amado. Depois que entrei no Atheneu Norte-Rio-Grandense recebi indicações valiosas de Zila Mamede, que era bibliotecária. Newton Navarro também me deu belas sugestões. Luiz Rabelo me deu indicações de poesia. Por isso, quando hoje qualquer pessoa bate à minha porta, vem à minha casa pedir conselhos ou mostrar originais, eu cuido com muita atenção. Também cuidaram de mim com muita atenção.
ZONA SUL – O que mais você recorda dos tempos do Atheneu?
NEI – Éramos os estudantes mais bagunçados do mundo. Costumávamos brigar com os meninos do Marista. Na nossa concepção os meninos do Marista eram afrescalhados. Reuníamos um grupo de 10 e ficávamos ali na Rua Apodi esperando que os alunos do Marista aparecessem, para bater neles. Lembro demais quando uma vez vinham uns dez estudantes com um padre bem alto tomando conta deles. Para nós o padre era bicha também. Nossa intenção era bater nele e nos alunos. Partimos pra cima, mas o padre era macho como o diabo. Bateu em todos. Bateu em nós nos dez. (risos) Nunca mais nossa turma foi lá bater nos meninos do Marista. Os trotes no Atheneu eram terríveis. As brincadeiras com os professores também. Professor de música geralmente era mulher. Lembro que Mozart Romano, no primeiro dia de aula quando foi ensinar essa disciplina, enfiou uma peixeira na mesa e disse: “eu ensino música, mas sou macho”. (risos).
ZONA SUL – Ao sair do Atheneu você foi estudar na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Por que escolheu o curso de Direito?
NEI – Meu pai queria que eu fizesse Direito. Eu não. Outro motivo é que Letras, no início dos anos 1960, era um curso muito fraquinho, muito primário. Então, escolhi Direito para atender pedido do meu pai e também porque havia professores como Câmara Cascudo, Américo de Oliveira Costa, Véscio Barreto e Edgar Barbosa. Eram intelectuais e pessoas a quem eu admirava. Fui mais por isso, até porque nunca gostei de Direito, acho horrível. Eu jamais seria advogado.
ZONA SUL – Nessa época você já imaginava que escrever poderia ser um caminho?
NEI – Escrever não é um caminho porque não leva a nada, em termos financeiros. Estou lendo um livro sobre Drummond no qual ele diz como ganhou tão pouco com sua poesia. E olha que ele é o nosso maior poeta. A literatura só dá dinheiro a um mago, a um bruxo, que é Paulo Coelho. Escreve mal, só diz e só escreve besteira, mas é milionário, com livros publicados em todo o mundo. Você chega a Paris, como estive há pouco tempo, em Florença ou em Roma, e os livros dele entopem as prateleiras.
ZONA SUL – E ele é respeitado.
NEI – É, e eu não entendo isso. Jorge Amado, por exemplo, que viveu de escrever, não teve uma vida boa. Se não fosse o empurrãozinho do Partido Comunista, a vida teria sido ainda pior pra ele.
ZONA SUL – De certa maneira você construiu sua vida escrevendo publicidade, criando textos publicitários. A partir do momento em que você cogitou fazer Letras, mas optou pelo curso de Direito, não sinaliza que na sua imaginação escrever poderia ser uma profissão?
NEI – Não sei. Só sei que não gostaria de ser advogado. Já pensou ser advogado de José Roberto Arruda? Ou ir para a televisão defender um bandido ou um canalha? Tenho grandes amigos advogados, mas eu quero distância dessa profissão. Acho que ela deixa moralmente muito a desejar.
ZONA SUL - Seu primeiro livro, “O pastor e a flauta”, foi publicado em 1961. Ele é dedicado aos seus pais: Antônio de Castro e Alice Leandro de Castro. Fale um pouco sobre eles.
NEI – Meu pai, como eu disse, era delegado de polícia. Era um policial que tinha muita sensibilidade e que gostava de ler. Mas isso não impedia que ele enfrentasse bandidos, como enfrentou em Caicó. Lia o tempo todo que estava em casa, em sua cadeira de balanço, quando estava de folga. Lia todo tipo de livro. Minha mãe é uma figura maravilhosa, teve nove filhos. Está viva até hoje, aos 96 anos de idade. Educou os filhos, encaminhou-os bem e deu muito amor a todos.
ZONA SUL – Em 1964 saiu o seu segundo livro, “Voz geral”. Ele tem algo a ver com o golpe militar daquele ano?
NEI – É um livro político. Naquela época eu era ligado à esquerda. Eu e Moacyr de Góes éramos presidentes da Ação Popular, aqui em Natal. Nunca me filiei, mas sempre estive ligado ao Partido Comunista. Quando estive preso, o livro fez parte do interrogatório ao qual fui submetido. É um livro daquela época em que todos nós acreditávamos que haveria uma revolução socialista. Hoje faço uma autocrítica. Grandes amigos meus - pessoas maravilhosas - foram presos, torturados e mortos em nome de um ideal: a revolução socialista. Se uma revolução esquerdista tivesse acontecido no Brasil, teria sido um desastre. O comunismo foi um dos maiores blefes de toda a história da humanidade. Durou apenas setenta e poucos anos na União Soviética e todos viram o que foi feito: mortandade. O Estado matou 30 milhões de pessoas. Mais do que Hitler. Era aquela vida sob o jugo, sob as botas do comunismo o que a gente queria? Tantos foram torturados e até mortos em busca de um ideal desses? Faço essa autocrítica: rezei mesmo pela cartilha do Partido Comunista, mas se tivesse triunfado uma revolução socialista, teria sido um grande desastre.
ZONA SUL – Em quais circunstâncias ocorreu sua prisão?
NEI – Quase todos nós fomos presos. Havia pessoas infiltradas em todas as faculdades. Eles eram muito organizados e nós, esquerdistas, nos achávamos o máximo. A última reunião que houve pouco antes do 1º de abril de 1964 - quando se deu o golpe – foi em uma sala de Gumercindo Saraiva, onde hoje é o primeiro andar do Sebo Vermelho. Lá havia a euforia de quem ganhou a revolução. Houve um coquetel chamado sangue de gorila. Era vodka com uma coisa vermelha. Todos gritavam: “vamos beber o sangue do gorila”, “viva a revolução”, “viva o Brasil socialista”... Era uma euforia estúpida. Fui um desses. Fui preso por um dos agentes infiltrados lá na Faculdade de Direito. Ele se chama Ivan Benigno. Foi lá na casa onde eu morava, perto do Colégio Marista, me rendeu com um revólver e me levou para a polícia. Haviam infiltrados em todas as faculdades. Eles estavam muito bem organizados e nós éramos apenas eufóricos.
ZONA SUL – Como foi o período em que você estudou na Faculdade de Letras de Lisboa?
NEI – Lá eu fiz uma extensão universitária em Letras. Tive ótimos professores, como Jacinto do Prado Coelho e Lindley Cintra. Quando cheguei, no final de 1968, Salazar já estava entrevado em uma cama, já não fazia mais nada, mas a PIDE (Policia Internacional de Defesa do Estado) dominava Portugal de uma maneira perfeita. Tive muitos amigos comunistas e grandes amigos na Faculdade de Letras. Tive bons professores, sobretudo Lindley Cintra, que foi preso por conta da posição política dele. Em 2008 voltei a Lisboa só para comemorar os 40 anos da minha estada em Portugal. Foi marcante. Eu amo Lisboa.
ZONA SUL – Antes de ir para Lisboa você passou pelo Rio de Janeiro. Como foi deixar Natal?
NEI – Em 1968 eu estava vivendo os fins de um casamento desastrado. Não havia possibilidade de continuar esse casamento. Ela tinha um temperamento muito difícil que se chocava com o meu de uma maneira terrível. Depois de uma briga desagradabilíssima, sai desesperado com a roupa do corpo, peguei um ônibus com pouco dinheiro no bolso e fui bater no Rio de Janeiro. Ainda bem que lá eu conhecia algumas pessoas, como Moacy Cirne. Fiquei uns tempos morando com ele. Em seguida arranjei emprego em uma editora e fui me ajeitando. No fim de 1968 fui para Lisboa. Voltei em 1969 e fiquei no Rio até 2005.
ZONA SUL – Antes de trocar Natal pelo Rio você organizou, em 1967, “Contistas norte-rio-grandenses”. Fale sobre essa obra.
NEI – Sempre digo que há poucos ficcionistas no Rio Grande do Norte. Talvez você conte os bons nos dedos de uma mão. Resolvi levantar os poucos contistas que havia, pois, romancistas, nem pensar. Com certa cautela, peguei os contistas antigos, os mais ou menos e os atuais. Acho que fiz um bom trabalho. Já deveria ter saído uma segunda e até uma terceira edições ampliadas. Mas não fiz, não sei por quê. Qualquer dia faço, pois hoje já tem bastante contista.
ZONA SUL – Em seguida, 1969, você publicou “Decomposição do nu”.
NEI – Lancei em Lisboa, na Revista Hidra. É um poema processo. Em Lisboa tive contato também com os poetas de vanguarda, entre eles Ernesto Manuel de Melo e Castro, que publicou este meu poema.
ZONA SUL – Já de volta ao Rio, você lançou, em 1970, “Universo e vocabulário do Grande Sertão”. Até então você não pensava em escrever romances?
NEI – Sabe que não? Sempre fui um grande leitor de romance. Acho que nos anos 70 não me ocorria. Somente na década seguinte comecei a pensar na possibilidade de escrever romances. Em 1982 escrevi “O dia das moscas”, que foi lançado no ano seguinte.
ZONA SUL – Como surgiu a oportunidade de escrever no Pasquim? E o pseudônimo Neil de Castro?
NEI – Depois de ver aquela publicação maravilhosa, irônica, brincalhona e criativa, escrevi uma crônica nesse estilo e levei para Millôr Fernandes. Ele ficou entusiasmado: não só publicou o texto, fez também uma introdução dizendo que havia um novo cronista e tal. Puxa, fiquei nas nuvens, né? Adotei o quase pseudônimo Neil de Castro porque Ziraldo achou que meu nome era muito grande. Pediu para diminuir. Botei Nei L de Castro. Virou Neil e ficou conhecido. Tem gente no Rio que até hoje me chama de Neil de Castro. Eu podia ter escrito mais, ter ido mais adiante. Mas eu trabalhava dois expedientes, não podia largar para ficar escrevendo para o Pasquim. Além disso o pessoal do Pasquim me inibia. Paulo Francis me inibia, o Ivan Lessa me inibia... Eu chegava lá, deixava uma crônica e ia embora. Tinha mais contato com Jaguar e Ziraldo.
ZONA SUL – Sobre o Neil de Castro tem até uma historinha sua com Carlos Drummond de Andrade. Como foi?
NEI – Estive com ele algumas vezes. Nesse livro “Dossiê Drummond”, baseado em uma entrevista concedida ao jornalista Geneton Moraes Neto, Drummond faz uma referência a mim. Tive alguns encontros com ele, em sua casa na Rua Conselheiro Lafaiete. Em uma daquelas ocasiões, lá pelas tantas eu perguntei: “poeta, e os seus poemas eróticos?”. Ele respondeu: “deixa pra lá, isso é pra quando eu morrer. Por falar nisso, tem um quase homônimo seu, Neil de Castro, que escreve contos eróticos muito bem”. Quando eu disse “Neil sou eu”, ele ficou encabuladíssimo. Jamais Drummond teria feito esse elogio de corpo presente. Era meio arredio. Ficou vermelho e comentou: “mas como sou estúpido”. (risos). Foi muito engraçado.
ZONA SUL – Como foi sua vida como publicitário?

NEI – Foi boa. Escrever sempre é bom, criar é bom. Eu detesto cigarros, mas quando tinha que fazer uma campanha para uma determinada marca, eu era obrigado a produzir o melhor possível. Produtos pelos quais não dá um tostão por eles, você têm que elogiar e fazer com que as pessoas os comprem. É difícil. Em compensação a profissão sempre foi muito bem remunerada. Ficava em uma agência, daqui a pouco recebia uma proposta que significava um aumento de 30, 40 ou 50 por cento. Depois ia para outra agência, demorava mais. Esse lado sempre foi o mais prazeroso pra mim, porque sempre ganhei bem. Tudo o que eu tenho de bens materiais devo a minha fase como publicitário. E não tenho muita coisa, porque não tenho vocação de rico. Mas se não fosse a publicidade, eu não teria o que tenho.

ZONA SUL – No Rio você lançou alguns livros tendo Natal como musa inspiradora de seus poemas. Seria o desejo de voltar a morar na cidade?
NEI - “Romance da cidade do Natal” escrevi em Natal e levei para o Rio, onde publiquei em 1975. Eu gosto muito do Rio. Sempre me dei muito bem com a cidade. Nunca fui assaltado no Rio de Janeiro, durante 37 anos. Vim ser assaltado aqui em Natal, no Pão & Companhia. Isso porque dizem que o Rio é a cidade mais perigosa do Brasil. Tenho uma filha e uma neta que moram lá. Minha mulher, Sandra, é do Rio. Estou sempre indo por lá.
ZONA SUL – Você tem poemas sobre o Rio?
NEI - Sim. Estão publicados nos meus livros de poesia. Certa vez peguei uns dez desses poemas e coloquei no livro “Às margens do Rio”. Com ele concorri, em 1980, ao prêmio Casa de las Americas. Esse prêmio literário é outorgado anualmente pela Casa de las Americas de Havana, Cuba, desde 1960. Na época era o mais prestigiado dos prêmios. Algum tempo depois, João Ubaldo, ao se encontrar comigo, indagou se eu sabia que tinha vencido e não tinha levado o prêmio Casa de las Americas. Perguntei que história era aquela. João Ubaldo, que fez parte da comissão julgadora no ano que concorri, disse que meu livro foi julgado o melhor pela comissão. Era o primeiro ano que a Casa de las Americas tinha aberto inscrição para livros na língua portuguesa. O professor Antonio Cândido era o presidente da comissão julgadora. Ele convocou uma reunião e disse que não era justo, no ano em que o Casa de las Americas estava abrindo para a língua portuguesa, premiar um livro “com muitos palavrões e erotismo”. Meu livro não foi premiado por conta do senhor Antonio Candido. Pela sua estupidez, imbecilidade e falso moralismo. Fiquei revoltadíssimo com isso. Seria uma chance de mostrar minha poesia para a mídia. Eu poderia ter escrito mais livros, penetrado no eixo Rio-São Paulo, que é difícil.
ZONA SUL – O erotismo sempre esteve presente na sua obra.
NEI – “Zona erógena”, de 1981, é um dos livros mais fortes nesse sentido. Em “Era uma vez Eros”, de 1993, quando reuni “Zona erógena” e mais dois livros, ficou mais evidente ainda. Depois publiquei “Diário íntimo da palavra”, no ano 2000, que é mais amenizado. É nesse livro que tem o livro com os poemas do Rio de Janeiro.
ZONA SUL – Você voltou a Natal para escrever seus primeiros romances?
NEI – Foi. Voltei em 1981. Escrevi “O dia das moscas” em 1982. Depois, em 1985, escrevi “As pelejas de Ojuara”. Eu só conseguia escrever aqui, com esse clima.
ZONA SUL – Quer dizer que você voltou para Natal já focado em escrever romances?

NEI – Querendo. Você não pode dizer que vai escrever um romance. É difícil.
ZONA SUL – Fale um pouco sobre “As pelejas de Ojuara”.
NEI – Acho que Ojuara “pegou” pelo perfil do cavaleiro sem medo e sem mácula e por aquela viagem que ele faz em torno do Rio Grande do Norte, no sertão, como um Quixote não quixotesco indo através da Espanha. Don Quixote me influenciou e é, para mim, o maior romance de todos os tempos. “As pelejas de Ojuara” tem muito erotismo. Algumas pessoas gostam, outras não. Na segunda ou terceira página tem um episódio que faz muita gente largar o livro ali: ele fazendo a barba de uma mulher e tal.
ZONA SUL – Você tem um livro em parceria com Celso Japiassu: “50 sonetos de forno e fogão”, publicado em 1982. Como foi a experiência?
NEI – Escrevi no Rio de Janeiro. Eu gosto de cozinhar, Celso Japiassu também. Escolhíamos uma receita, testávamos e três dias depois eu ia para a casa dele onde escrevíamos o soneto a quatro mãos. Terminamos escrevendo 50 sonetos. Não tenho um único exemplar desse livro na minha casa. Acabei dando todos.
ZONA SUL – Vocês engordaram quantos quilos escrevendo esses sonetos?
NEI – (risos). Depois desse livro lancei, em 1984, “Musa de verão”. Antes eu tinha lançado outros dois livros de poesia: “Feira livre”, em 1975, e “Canto contra Canto”, em 1981.
ZONA SUL - Um dos prêmios que recebeu foi um carro, da revista Playboy.
NEI – Foi o maior prêmio que recebi, em termos de valor. O carro hoje seria o equivalente a um Stilo. Foi em 1995. Concorri a um prêmio de contos eróticos. Foram 1200 inscritos. A comissão julgadora era da maior qualidade: Ivan Ângelo, Lygia Fagundes Telles e José Castello. Algum tempo depois de eu ter me inscrito, estava em casa almoçando com Danilo Bessa, sua esposa e minha filha. Minha mulher estava trabalhando. Quando atendi ao telefone que estava tocando, alguém disse que era da Playboy e que eu tinha ganhado um carro. Respondi: “me diga logo quem está falando e não venha com trote para cima de mim não”. A pessoa insistiu que era verdade, disse que era fulano de tal e me convidou para ir a São Paulo receber as chaves. Finalizada a ligação, peguei a chave do carro que eu tinha e entreguei a minha filha, dizendo: “você acaba de ganhar um carro”. Fui para São Paulo, almocei no Fasano - que é o restaurante mais caro do mundo - e recebi um carro maravilhoso. Acho que vou publicar um livro de contos cujo título será o desse conto premiado: “Nossa semelhança com os deuses”. É a história de um serial killer que vai conquistando e matando mulheres com requintes de muito erotismo no meio.
ZONA SUL – Além de Drummond você manteve contato com outros escritores?

NEI – Estive no apartamento de João Cabral de Melo Neto, no Flamengo. Tentei falar com Manuel Bandeira, por quem eu tinha muita admiração, mas não consegui. Dos mais jovens, tive contato com Affonso Romano de Sant'Anna e Silviano Santiago. Respeito muito a casa das pessoas. Tenho vontade de ir, mas me controlo. Só vou quando convidado. Cabral era mais tímido do que Drummond. Com Drummond cheguei a trocar correspondência. Ele nutria uma simpatia muito grande por mim. Nesse livro de Geneton Moraes Neto, Drummond me chama de “meu amigo”.
ZONA SUL – Carlos Drummond de Andrade também elogiou “As pelejas de Ojuara”.
NEI – Eu transcrevo na quarta capa de uma das edições o comentário que ele fez a respeito do livro. Pedi autorização a Drummond para publicar esse elogio. Ele ficou surpreso e respondeu: “o que escrevi para você, é seu. O que me admira muito é você pedir autorização, porque ninguém pede isso não”. Eu disse que jamais publicaria sem autorização.
ZONA SUL – O livro foi premiado pela União Brasileira de Escritores. Você gostou da adaptação de “As pelejas de Ojuara” para o cinema? Você ajudou no roteiro do filme “O homem que desafiou o diabo”?
NEI – Dei palpites, mas a maioria deles não foi levada em conta. Acho que o filme poderia ter sido melhor. Se fosse dirigido pelo Guel Arraes, com aquele tempero que ele dá às coisas nordestinas, seria um excelente filme. De qualquer forma, “O homem que desafiou o diabo” é um filme razoável. Um problema é que ele é centrado em um único personagem, deixa de lado histórias engraçadas. Pedi a Luiz Carlos Barreto que colocasse pelo menos o Sancho Pança, o Celso da Silva, aquele gordo comilão. Ele não quis. Pedia palpite, mas nunca aceitava nada.
ZONA SUL – Mas o filme deu um impulso na sua carreira.
NEI – Foi, sem dúvida nenhuma. Muita gente viu o filme e correu para comprar o livro. Mas o filme poderia ter sido melhor. Talvez por medo de gastar muito dinheiro, por receio de passar o orçamento, Luiz Carlos Barreto ficou muito em cima do diretor, Moacyr de Góes Filho, que é muito bom. Barreto ficou em cima, manobrando. Ele não faria isso com Guel Arraes.
ZONA SUL – “As dunas vermelhas” ou “Fortaleza dos vencidos” chegaram a despertar o interesse do cinema?
NEI – Até agora não. Muitas pessoas já comentaram que “Fortaleza dos vencidos” daria um ótimo filme. Gosto particularmente desse livro por causa do final mágico, onde pessoas dos séculos XVI e XVII se juntam com outras como Baracho, que ficou conhecido por assaltar e assassinar motoristas de táxi em Natal. Dizem que o túmulo dele no Cemitério do Bom Pastor é cheio de flores, e que ele faz milagres. No final também aparece o Jacó Rabbi, o judeu que comandou o massacre de Uruaçu. Tem ainda o soldado Luiz Gonzaga, Zé Limeira Filho...
ZONA SUL – Você tem muitos inéditos guardados? Está trabalhando em algum projeto?
NEI – Só tenho contos. Estou à procura de uma idéia para desenvolver, mas não é fácil. Quando surge a idéia fica mais fácil prosseguir. Ojuara surgiu da seguinte forma: era uma pessoa que se chamava Araújo e que vivia sendo manobrado. Ele resolveu mudar de vida e trocou o nome para Ojuara, que é o contrário de Araújo. Era isso que eu tinha. A partir daí desenvolvi a história toda. No livro tem amigos e até inimigos meus. Tem um lá que me odeia. O amigo Celso da Silveira passou oito anos sem falar comigo. Depois desse tempo ele disse que tinha sido muito estúpido: “hoje eu tenho orgulho de ser seu personagem”, confessou.
ZONA SUL – Quem você destacaria da literatura potiguar?
NEI – A poesia norte-rio-grandense é muito boa. Tem Jorge Fernandes, Luiz Carlos Guimarães e tem Berilo Wanderley, que publicou pouco, mas é um belo poeta. Também tem Zila Mamede, Myriam Coeli e umas jovens poetisas que são muito boas: Iracema Macedo, Diva Cunha, Carmem Vasconcelos, Jeanne Araújo e Maria Gomes. Costumo dizer que, proporcionalmente, aqui se escreve poesia mais e melhor do que no Rio de Janeiro. Apesar dos enganadores, têm muito poeta em Natal. Luiz Carlos, por exemplo, podia ser um nome nacional. Uma vez, em um recital no Rio, ao invés de dizer poemas meus, resolvi recitar Luiz Carlos Guimarães. Li uns cinco poemas dele. Quando acabei, todos queriam saber quem era e onde encontrar poemas dele.
ZONA SUL – O que faltou para Luiz Carlos Guimarães se tornar um poeta nacional?
NEI – Faltou a mídia. A mídia só quer saber do eixo Rio / São Paulo. Dificilmente um poeta bom daqui vai alcançar repercussão lá fora. É muito complicado. Ter uma resenha n’O Globo, no Jornal do Brasil ou em Veja é a coisa mais difícil do mundo. Tem muito livro ruim resenhado porque o autor é do Rio ou de São Paulo. Muitas pessoas que não valem uma resenha estão nas páginas das revistas famosas e importantes.
ZONA SUL – A internet ajuda no seu trabalho de alguma maneira?
NEI – Eu não uso. Eu uso computador às vezes para pesquisar no Google, para me corresponder e para escrever. É a melhor máquina de datilografia do mundo. Imagina escrever 300 páginas datilografadas.
ZONA SUL – Pelo que você está dizendo o computador ajuda e muito no seu trabalho, já que ele serve para suas pesquisas, para você se corresponder com o mundo e também para digitar seus textos.
NEI – Corrigir um livro no computador é uma coisa. Agora, errar escrevendo em uma máquina de datilografia é terrível: tem que riscar ou jogar fora a página e começar de novo. Foi um grande avanço. Uso principalmente como excelente máquina de datilografia. Tem gente que passa quatro, cinco horas no computador. Eu não fico. No máximo passo duas horas por dia. Tenho muita correspondência com a França, Portugal... Em questão de segundos a mensagem chega lá.
ZONA SUL – Você já pensou em criar uma página para divulgar seu trabalho na Internet?
NEI – Não. Quem divulga um pouco é Sandra, através do seu blog: (http://sandraporteous.blogspot.com/)
ZONA SUL – O que você acha desse novo equipamento que está surgindo, o leitor eletrônico, capaz de armazenar milhares de livros?
NEI – Uma loucura. Eu não leio em tela. Só leio em página de livro. Gosto de pegar no papel, de amassá-lo, de boliná-lo e de sentir o cheiro. Ler texto grande na Internet, jamais. Pode até ser esse o futuro da literatura, mas eu quero é meus livros de papel mesmo. Claro que as gerações novas vão se adaptar ao ponto de no futuro nem chegar perto de livro.
ZONA SUL – O que você recomendaria a alguém que está começando a escrever
NEI - Como é difícil isso. Eu recomendaria tentar, tentar, tentar e ler muito. Se quer escrever ficção, leia boa ficção. Depois que Jorge Amado me arrebatou com aquela leitura agradável e sacana, li todo Erico Veríssimo. Ele é excelente narrador. Li muito e nunca deixei de ler. É isso que eu recomendo.
ZONA SUL – Muito obrigado pela entrevista.
NEI – Acho que é isso. Tire os excessos e acho que vai ficar bom. Outro dia uma menina veio me entrevistar. Quando ela acabou, perguntei o que tinha achado. Ela respondeu: “Vou tirar os ‘puta que o pariu’ e o resto vai ficar bem”. (risos).