segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Um sonho que a gente teve - Por Rafael Duarte


O hall de entrada da Fundação José Augusto estava lotado.  Um calor insuportável. Artistas, produtores culturais, jornalistas e funcionários do órgão aguardavam a então governadora Wilma de Faria anunciar o valor da renúncia fiscal para os projetos  que seriam contemplados pela lei Câmara Cascudo de incentivo à cultura. Estamos em 2006, eu era repórter de cultura da Tribuna do Norte.
Ali, em meio àquele alvoroço de gente, me espremia entre uma pilastra e um poeta para chegar perto da mesa principal quando um puxão no meu braço me tirou de rota. O sorriso largo que apertava ainda mais os olhos miúdos e o abraço eram inconfundíveis. Cantei a pedra: Deífilo Gurgel, o ‘professor’, estava preparando mais uma das suas.
Fazia algum tempo que não nos víamos. Coisa de semanas.  De vez em quando, o telefone da velha TN tocava. Era ele falando de algum artista esquecido pela falta de memória do estado. Naquela manhã, na Fundação, Deífilo tinha novidades. Como quem conta um segredo a um amigo, disse que viajaria no dia seguinte para o interior do estado. A ideia era mapear todos os locais e ver como estavam os personagens que descobriu na viagem de 1979, que deu origem ao livro ‘Espaço e Tempo do Folclore Potiguar’.
Com a cara de pau que Deus costuma dar aos repórteres, perguntei se tinha vaga:  - Vai apenas eu e o motorista, Rafael…Voltei ao jornal, combinei com Cínthia e Peixoto e, em meia-hora, Deífilo ligava para confirmar.
- Tudo certo, professor! Posso levar um fotógrafo? Deífilo ria. No dia seguinte, às 7h30, ainda dentro do ônibus, vejo no visor do meu celular o nome do professor. Do outro lado, depois do bom dia, um pedido inusitado:- Rafael, me faça um favor, em vez de ir para a Fundação, me espere em frente à igreja de Santa Terezinha. Só fui entender quando começou a viagem. Deífilo ficou com medo que alguém do governo achasse que ele estivesse usando o carro para se promover com a imprensa. Esse excesso de humildade é marca da personalidade do professor.
No caminho, proibiu também o motorista de ligar o ar-condicionado do carro em Natal. - Vamos deixar para quando tiver muito calor. As pessoas acham que só porque é do governo tem que gastar. Foi uma viagem de lições pelos litorais Norte e Sul. Era emocionante vê-lo reencontrar amigos ou familiares de quem já tinha partido. Cada abraço tinha o conforto da saudade morta. Há uma reciprocidade bonita e ingênua no amor entre o professor e a cultura popular. Voltei para casa lembrando o que Nelson Sargento disse uma vez sobre o amigo Cartola e, ali, entendi o tamanho e a dor dessas saudades. Deífilo ainda resiste. Mas no fundo ele nunca existiu: foi um sonho que a gente teve.

Nenhum comentário:

Postar um comentário