terça-feira, 19 de julho de 2011

Henrique Castriciano. Um homem de idéias



Henrique Castriciano não foi apenas o intelectual mais culto de sua época, um scholar, naqueles anos da transição entre o século dezenove e as primeiras décadas do século vinte. Foi o olhar mais moderno a ferir a quietude pachorrenta deste vale branco entre coqueiros, para repetir o poeta Ferreira Itajubá. Homem de espírito e de gênio, inaugurador entre nós das grandes viagens e das descobertas de outros mundos, foi uma pedra a quebrar, com idéias novas, a vidraça da velha estética provinciana.
As novidades naquele começo de século vinte chegavam a Natal vindas do Rio, corte política e literária. As conferências, com a palavra lançada em voz alta, encantavam as platéias e serviam para arrecadar fundos em benefício de obras sociais. Ainda em 193O, Eloy de Souza fez a conferência ‘Alma e Poesia do Litoral’, com a renda em benefício da construção da Igreja de Santa Terezinha.
As conferências reverberavam nas vozes célebres de Joaquim Nabuco, Olavo Bilac, Medeiros e Albuquerque e Oliveira Lima. E o reflexo se ouviu nas conferências de Eloy de Souza e Manuel Dantas, em 1909, com suas visões pioneiras na valorização da vida quotidiana e na projeção de uma Natal que só a antevisão mágica de um Manuel Dantas seria capaz de imaginar a seu tempo.
É nesse ambiente que Henrique Castriciano, depois de uma longa viagem à Europa em busca de curar os pulmões cavernosos e saciar a fome do espírito, retorna à sua vila trazendo na bagagem um instante vivido numa barca quando fazia a travessia do Lago Leman, de Genebra para Lausanne.
Ele descreve num estilo primoroso, com literariedade de grande escritor, os contrafortes de sua pobreza feita de botinas de couro de bezerro e o requinte abusado de um casal de brasileiros vestido a rigor. Na mão do moço, Henrique sentiu a aristocracia bacharelesca de um magnífico anel - ‘deve ser um doutor em qualquer coisa’. Mas, a ela, seu olhar de poeta sensual não negou a formosura e confessou aos que lhe ouviam, há um século: ‘A moça, de olhos garços e tez branca, formosíssima, tinha o ar macilento das reclusas, a beleza mórbida das mulheres fatais’.
Aquele homem de pele escura, jeito rude, feições grossas, poliglota e leitor dos clássicos, poeta e prosador, voltou seus olhos míopes para o livro que levava nas mãos e só desviou a atenção quando um grupo de moças embarcou no cais de Coppet. Ele conta: ‘A barca estacionou um instante em Coppet, onde com a mais viva alegria entraram diversas educandas, acompanhadas das professoras, em respeitosa camaradagem, sorrindo ao sol de outubro, excepcionalmente belo naquele dia, derramando também seu riso de luz no lago tranquilo e nos Alpes gelados’.
Henrique descreve as roupas simples e discretas das estudantes, suas pesadas bolsas a tiracolo, como se viessem das aulas. Numa dúvida irônica, anota quando uma delas senta ao lado da brasileira formosa que lhe hostilizara com o olhar: ‘Talvez porque lhe fizesse mal aos nervos o ruído do lápis anotador, talvez porque lhe magoassem a vista o grosso vestuário da jovem’. Começava a nascer ali o sonho de fundar a Escola Doméstica. Eram as alunas da escola suíça que seria modelo do seu sonho.
Ao longo da conferência ‘Educação da Mulher’, lida no salão de honra do Natal Club, em 23 de julho de 1911, há um século, diante do governador Alberto Maranhão e de figuras como Meira e Sá, José Augusto, Manuel Dantas, Juvenal Lamartine e Fabrício Maranhão, entre outros, instalava-se a Liga de Ensino que tornaria possível realizar aquele sonho de criar a Escola Doméstica.
Henrique usa a expressão feminismo, tão moderna há um século, como uma exacerbação desnecessária à educação feminina, mas alerta para o erro de limitar a mulher ‘exclusivamente à vida do lar, como um egoísmo do homem’. Ao encerrar sua fala, proclama a modernidade de sua visão, há cem anos, como se falasse às autoridades de hoje: ‘Para ser grande esse povo, só falta educação’.
Quando fechou os olhos para sempre, na manhã de 26 de julho de 1947, há 64 anos, num leito da Policlínica, onde agonizara vários dias, Edgar Barbosa escreveu diante do morto ilustre:
‘Talentoso e humilde, esbanjou como um príncipe de Golconda, numa aldeia de vaqueiros e pescadores, o seu amor e a sua fortuna’.
Esta conferência que a Liga de Ensino devolve aos olhos um século depois, revela toda a grandeza de visão de Henrique Castriciano de Souza, uma usina de idéias luminosas.

Natal, 2011, nos cem anos da Liga de Ensino.

Vicente Serejo

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